(Entrevista com Lygia Fagundes Telles)
Por isso, procuramos Lygia Fagundes Telles, autora de textos importantes da ficção brasileira contemporânea, tais como Ciranda de Pedra; As meninas; Antes do baile verde e A disciplina do amor, entre outros. E, desse encontro, nasceu o seguinte diálogo:
- Lygia, quais foram seus primeiros contatos com o mundo da ficção?
- Bem, eu nasci em São Paulo, mas passei a infância em pequenas cidades do interior do Estado, onde meu pai foi promotor ou juiz: Sertãozinho, Assis, Apiaí... Foi uma infância meio selvagem, livre e na qual se destacou a figura principal de uma pajem preta, adolescente desbocada e sensual que me fazia confidências e contava histórias, centenas de histórias de lobisomens, almas-penadas, antiquíssimos mortos que se levantavam chocalhantes e lá vinham com seu canto fanhoso até nossa porta. Então eu tremia de medo enrolada nas cobertas (as histórias eram sempre contadas durante a noite, no escuro) e chegava a tapar os ouvidos mas deixando sempre uma fresta, enquanto ela prosseguia implacável. Era demasiado excitante aquele jogo; eu exigia que me contasse aqueles casos tenebrosos e ao mesmo tempo me escondia debaixo da cama, o sofrimento agudo misturado ao prazer que se prolongava depois, quando ela ia dormir e eu ficava sozinha, reinventando tudo, criando novas personagens, novas situações...
- Quer dizer que a futura criadora de personagens já ensaiava os primeiros passos?
Na verdade, eu comecei a experimentar o gosto de narrar histórias um pouco depois. O sucesso dessa pajem contadora de histórias começou a atrair a criançada que vinha se sentar na escada de pedra do nosso quintal, depois do jantar, em meio da cachorrada, tínhamos muitos cachorros. Certa noite, ela não apareceu, tinha fugido com um trapezista do circo. Num impulso de audácia, resolvi substituí-la: foi quando descobri que sentia menos medo enquanto eu mesma falava porque se era excitante ouvir, mais excitante ainda era narrar e ver estampado nas caras em redor todo o horror que se esvaía de mim. Transferia para o próximo a minha insegurança, o meu medo, mas não era extraordinário descobrir isso? Pensei e me senti independente, poderosa. Datam dessa idade de ouro os meus primeiros escritos, assim que comecei a escrever, isso depois do aprendizado com a sopa de letrinhas, tinha um macarrãozinho com todo o abecedário, eu ia alinhando as letras nas bordas do prato fundo, era muito difícil - me lembro - encontrar o Y do meu nome. Então recorria ao caldeirão, onde as letras todas estavam lá no fundo, fervendo borbulhantes.
- Você acredita em vocação, Lygia?
- Vocação, sim, acredito em vocação, essa força, esse sortilégio e magia que puxa pelos cabelos e no empurra nesta direção e não naquela. Uma fatalidade. Penso às vezes que não escolhi mas que fui escolhida. Eu nem sabia o que queria dizer vocação mas, de forma instintiva, inocente, já estava assumindo o meu ofício, fazia minha opção desde cedo, quando ainda nos cadernos de escola escrevia os meus delírios, procurando obscuramente guardar a palavra, garantir a sua permanência. E o que pretende o artista senão isso? Permanecer. Ficar. A obra de arte é a negação da morte.
- Como nascem seus textos?
- Alguns dos meus textos nasceram de uma simples frase ou de uma imagem qualquer, algo que vi e que retive. Outros ainda nasceram em algum sonho, enfim, a maior parte dos meus trabalhos talvez tenha mesmo origens que devem estar nos emaranhados do inconsciente, zona de sombra, obscura. vaga e misteriosa como um fundo de mar, o ato de criação é sempre um mistério. Impossível determinar as fronteiras do criador e da criação. Do real e do imaginário. Sei que há escritores que conseguem se explicar tão bem. Eu não Escrevo e esse corpo-a-corpo com a palavra já me toma todo o tempo que se faz cada vez mais curto neste cotidiano devorador.
- Alguns críticos afirmam que sua obra expressa uma visão meio desencantada do ser humano. Você concorda com isso?
- Há quem considere a minha obra com um certo travo demasiado amargo, talvez. Não participo dessa opinião, sei que tenho o senso de humor: completamente doce, só o mel. Não é um texto destituído de esperança, eu tenho esperança. às vezes, anoiteço, como toda gente, mas sei que tem a manhã. Então espero por ela com o seu grão de imprevisto e de loucura. Tenho meus temas preferidos, precisamente a loucura, “o homem é tão necessariamente louco que não ser louco seria uma outra forma de enlouquecer”, dizia Pascal. A luta do homem. Seu medo e sua fragilidade. Seu sofrimento e sua solidão. O amor. A morte, esses os temas que me fascinam.
- Como você vê a literatura feita por mulheres? Ela tem algo que a diferencia da literatura feita por homens?
- Sim, a ficção feminina tem características próprias é mais intimista, mas confessional, a mulher está podendo se revelar. Se buscar e se definir, o que a faz adotar um estilo bastante subjetivo, aparentemente narcisista: ela precisa falar de si mesma. No meu romance “As meninas”, há a frase de uma personagem que aborda a situação:” Antes eram os homens que diziam como nós éramos. Agora, somos nós.”
Agora, quanto a uma propalada divisão de águas no sentido de separar especialmente a literatura feminina da masculina, penso que essa divisão não existe. Há livros de mulheres que são livros bons ou livros que são ruins, exatamente como acontece com os livros dos homens. A única divisão seria no sentido da qualidade. O sexo é como o sexo dos anjos, não interessa.
- E o preconceito?
- Ah! O preconceito. No começo da minha carreira eu sentia preconceito bastante agudo: a desconfiança. A ironia. Ironia maior ainda por parte das mulheres, é curioso, mas nas minhas relações femininas sentia mais vivo esse descrédito. Essa pouca fé. Afinal, elas não se arriscavam, não ousavam e, quando viam alguém romper a tradição e entrar numa universidade ou assumir uma profissão considerada masculina, ficavam irritadas com esse desafio. Essa arrogância: como o preso que vê o outro fugir enquanto ele continua engaiolado. Mas tudo isso já está passando. As universidades agora estão cheias de moças, elas participam de tudo, tamanha sede de conhecer, descobrir: não há mais fronteiras para a mulher no mercado de trabalho. Injustiças, sim, mas não fronteiras. Essa libertação está fazendo com que a mulher fique mais generosa. Menos competitiva: quem tem asas, voa.
- Você falou sobre vocação literária. Mas e a vida, Lygia? Como é a vocação para viver a vida plenamente?
- Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?
Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida / é luta renhida. Lutar com aquela expressão da criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham, os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras, mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma... O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! Por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. da loucura. Romper com falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte - ainda intensos - seremos um fantasminha claro de amor.
- Para finalizar, Lygia, qual a função do escritor?
Creio que a função do escritor é a de ser a testemunha do seu tempo e da sua sociedade. Escrever por aqueles que não podem escrever. falar por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Estender, através da palavra, uma ponte para o próximo, comunicar-se com ele e ajudá-lo, mesmo com soluções ambíguas, na sua luta e na sua esperança. A esperança que o escritor tem que ter no coração.
(Entrevista dada a Douglas Tufano em 1983)
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